O estranho mundo de Theodore

























É inevitável a empatia imediata com o mundo solitário de Theodore Twombly (Joaquin Phoenix). Na volubilidade de um processo de divórcio, ensimesmado, voltado para si e para o seu mundo que rui, Theodore vagueia entre o trabalho como escritor, que providencia aos seus clientes eloquentes cartas que exprimem o amor e o afecto que eles mesmos são incapazes de pôr em palavras, durante o dia, e as noites ocupadas entre jogos de vídeo, redes socias e as memórias dolorosas da separação.
Reduzido aos escombros de memórias e do vazio quotidiano, incapaz de estabelecer e aprofundar relações com com o ‘outro’, inevitavelmente Theodore sucumbe em indiferença a tudo o que o rodeia, com excepção de uma amiga de longa data e vizinha e a fugazes vislumbres aos que o rodeiam. E todos eles, iguais a si e entre si, em desencontro, desconhecimento e reclusão, reduzidos a peripatéticas digressões quotidianas de solidão e indiferença, não diferentes da sua.
Onde o outro é ausente é também ausente o corpo e a carnalidade. Num mundo rarefeito de humanidade e sem corpo(s), onde um novo sistema operativo, que adquire emoção e intuição – uma impossibilidade técnica e tecnológica mas negligenciável para efeitos de narrativa – devagar toma conta e conduz os estados emocionais de Theodore. Sem surpresa, Samantha (o sistema operativo, na voz de Scarlett Johansson), é o estímulo ao prazer solitário, onde o sexo é um voraz placebo do vazio e da solidão, de gratificação imediata e sem qualquer vínculo humano.
A questão coloca-se no significado do amor. Os gregos usavam quatro palavras para o dizer: storge (afecto natural, familiar); eros (desejo e amor romântico); phileo (amizade); ágape (dádiva completa ao outro). Her (Uma História de Amor) explora a hipótese do eros entre um homem e um dispositivo de inteligência artificial. O eros, a vertigem sentimental e emocional, que aqui não é mais do que apenas do que aquilo Theodore (e Samantha) narcisicamente sente(m), sem possibilidade de evoluir para a agape, esse amor incondicional e radical abertura ao outro, em toda a largueza humana. A impossibilidade do outro (e do amor), radicará na antropologia e na cultura deste mundo proposto por Spike Jonze.
Do egoísmo e narcisismo subterrâneos, resultado dessa sociedade atomizada, em que qualquer vínculo ao outro é tão mais frágil quanto a lógica do prazer imediato se impõe. A sucessão híper-hedonista recusa a dificuldade do real e a complexidade inerente a qualquer relação humana. O prazer como estímulo de preenchimento do vazio existencial que, ao invés de, justamente, o preencher, cava ainda e cada vez mais esse vazio.
Não é um filme sobre a solidão, mas propõe um mundo onde cada um de nós é desencontro, desconhecimento e reclusão. Her não configura, na aparência de uma fotografia de cores quentes e quase tácteis, a distopia de um mundo desumanizado e sob regulação totalitária, mas margulha-nos num universo onde cada indivíduo é um átomo isolado, à mercê do isolamento emocional, afectivo e humano.

[Her (Uma História de Amor), Spike Jonze, 2013, 120']


publicado no site do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura